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Archive for setembro \30\+00:00 2009

Surpresas

Chegou o dia de ir falar com o velho. Pedi para que o Juca me levasse. Onório morava numa cabana perto do rio, e teríamos que andar um trecho no meio da mata a pé. A mata na minha fazenda não era muito densa, mas era fácil se perder lá dentro, caso você se afastasse da trilha. Em sua maioria a mata tinha árvores grandes e antigas, que já estavam aqui muito antes de qualquer demarcação de terra feita pelo homem. Parte das árvores já havia sido cortada por lenhadores, outra parte perdera-se em incêndios e a floresta hoje sequer lembrava o que um dia foi.

Conversávamos animados e andavamos a passos lentos. Já podíamos ouvir o som tranquilo do fluxo da água do Rio, quando repentinamente um grito de terror explodiu do meio da floresta. Pela altura, não devia estar muito longe de onde estavamos.

– Diacho. – Falou Juca e começou a correr. Eu corri atrás, a poucos metros dele, mas Juca era mais rápido.

Poucos passos depois, vi Juca caindo numa armadilha, uma vala funda. Tentei parar, mas foi em vão. A inércia me empurrara para baixo da terra, junto com ele. Fiquei completamente sujo de terra, ralei os cotovelos e os joelhos, e parecia que minha testa sangrava. Juca estava em condição semelhante.

– Ara… num imaginava que tinha gente caçando por essas bandas. – Me disse Juca.

– E não tem. Pelo menos, não na minha floresta. Vamos tentar gritar.

Gritamos, mas não ouvimos nenhuma resposta. Estava escuro embaixo do buraco. Juca resmungava baixinho palavras que não vale a pena transcrever aqui.

Pouco tempo depois, começamos a ouvir uma voz. Cantava satisfeito e se aproximava da vala. Olhou para baixo e falou:

– Aqui é Orono. Patrãozinho tá aí?

– Estou sim, Onório! – Gritei feliz por ouvir a voz do velho. – Caímos aqui por acidente, traga uma corda!

Foi então, que minha esperança se esgotou.

– Ahahaha… véio Orono e mais vivo que o demonho. Num dianta gritá, num tem ninguém pur essas banda.

– Ara seu Onório. O patrão é um homem bão, não é o demonio não. Tira nóis daqui, sô! – Gritou Juca.

– Num dianta pregá peça ni eu, seu demonho. Véio Orono já conhece suas artimanha. Agora eu vô trata de expursá ocê, pra mo’doce dexá essas terra. Num é a toa que deixei a lua passá, pra mó’doce fica fraco e não pude me embaraia as idéa.

E dizendo isso, o velho se foi. Tentamos por diversas vezes sair do buraco, mas foi em vão. O velho cavara fundo, e nem subindo um no ombro do outro conseguimos alcançar a saída. O resultado foi só que me machuquei muito mais. Primeiro, porque não consegui me equilibrar nos ombros de Juca e caí umas três ou quatro vezes. Depois, porque não conseguia alcançar nada que me desse apoio na superfície, e acabei enganchando a mão em diversos locais diferentes.

Algumas horas depois, ouvimos Onório voltando. Vinha com uma mula, que arrastava alguma coisa pesada. Como o terreno não era liso, imagino o esforço a que tenha submetido o animal.

– Onório, por favor – gritei. – Deve estar havendo algum engano. Eu não sou demônio. Acredito nos deuses, pago meus impostos. Estou até ajudando Marcos a construir a igreja!

– Num dianta espraguejá, demonho. Onoró tem a visão, e desde que u sinhô chegou, percebi que era o demo, ou tinha parte cum ele. Onóro vê seu brio, é mais brioso que outros, num é naturar. Como ocê num é mago e num é fada, só pode ser coisa do diabo. Desse dia inté hoje, percurei oportunidade de te pegá, e quar foi a minha surpresa quando ôvi dizerem que o sinho tava a minha caça. Só podia ser pra mó de se livrá de mim. Mas o véio aqui foi mais rápido, fingi o grito de uma virge sendo sacrificada, pro sinho aparece correno, num foi?

– Do que você está falando? Que brilho? Virgem? Não entendo nada!

– Num si faça de disintindido, coisa ruim. Mas Onóro vai fazê um teste. Vou prepará uma caldera quente e jogá nuce. Se o sinhô morrê com a quentura da mistura, tá perdoado, num era demonho, e que Deus o tenha. Mas se o sinho véve, aí vô fazê uma oração e chama umas benzedera, pra mo’de te expursá dessas terra.

– Ara home, e porque não faz a oração de uma vez? Aí ocê não nos escalda! – Gritou Juca, com um fio de desespero na voz.

Onório riu.

– Mas é tinhoso memo! Onóro sabe que num dianta rezá com demonho forte! Agora ande, fique quieto enquanto eu preparo a receita. E num dianta troca de voiz, pois eu sei que ocê é cheio de artimanha!

Ouvimos ele juntar lenha e preparar a receita. Cheirava a gengibre e sálvia. Se ninguém passasse por ali, em algumas horas, certamente seriamos escaldados vivos. Na melhor das hipóteses, o caldeirão seria pequeno, nos feriríamos muito gravemente. Mas Juca, que conhecia as crendices do povo muito melhor do que eu, não tinha esse tipo de esperança.

Estavamos machucados. Tentamos sair do buraco por mais alguns minutos, mas só nos cansamos em vão. Onório sorria sempre que nos ouvia debatendo. Não tinhamos escolha.

Só nos restava esperar… e rezar.

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Sem notícias

Tive de ir até Hoor novamente, dessa vez para comprar algumas provisões que faltavam em minha fazenda. Marcos ainda estava fora e fiquei um pouco preocupado. O frei dificilmente se afastava da universidade, principalmente por tanto tempo. O que estaria tramando? Seria outro sonho?

Aproveitei para visitar sua obra. Estava terminando a reforma da torre da igreja, situada ao lado da universidade. Perguntei ao encarregado o que faltava para a conclusão da obra e ele me disse que, com o único homem que tinham disponível, levaria mais umas duas semanas.

Passei então numa das companhias da cidade e solicitei a juda de cinco homens fortes, experientes em construção e que quisessem o serviço. Ofereci um régio pagamento, desde que a obra ficasse pronta até no máximo amanhã a noite. O capitão deles era um militar, e geralmente eles eram os melhores para a construção de infra-estrutura. Sonhava em ser engenheiro, me confessou, mas se tornou bastante propenso faltar alguns dias ao treinamento do exército quando viu a quantia que eu pagaria. Ofereci mais um bom dinheiro para que não revelasse  a ninguém quem era o seu contratador.

Depois, voltei até o meu fornecedor de suprimentos e pedi para ele separar todo tipo de alimento durável, até que os estoques da nova igreja estivessem cheios. Foram vários tipos de grãos, frutas e carne-seca. Novamente, certifiquei-me de que não seria identificado.

Meu amigo teria uma grande surpresa ao retornar.

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O homem mais velho

Acabei chegando tarde de Hoor. A câmara comercial, como sempre, me segurou por mais tempo do que eu gostaria. Sempre os mesmos assuntos: vendedores de frutas querem que eu baixe meu preço, outros produtores querem arranjar maneiras de subir o preço e todos unidos querem redução dos impostos, reclamar do governo ou falar mal dos distribuidores navais.

Pouco antes de ir para lá, havia tentado encontrar Marcos, mas haviam me comunicado que ele não estava e que só deveria voltar durante a noite. Teria ido atender a uma urgência fora da cidade. Fiquei imaginando o que poderia ser. Na certa algum casamento de última hora, ou o nascimento de algum filho. A hipótese de urgência familiar estava descartada, já que a família do frei morava longe.

Chegando em minha fazenda, já pouco depois das oito da noite, encontro-me com Juca, esperando na porta de casa. Ele se levantou, tirou o chapéu e balançou a cabeça num sinal discreto de cumprimento. Logo em seguida me disse:

– Diacho patrão, o senhor demorou. Encontramos o homem mais velho dessas terra, mas ele num qué fala c’ocê. O velho insiste em te chamar de bruxo e diz que o senhor tem parte com o demo.

– Só me faltava essa agora. Quem é o homem?

– Ele é avô do seu Onório, dono da venda. Vive aqui desde muito antes d’ôce chegar por essas banda. Tem uma cabana perto do riacho, vive com a mulher e dois cachorro. Nenhum deles trabaia na fazenda. Tentamos trazê ele de tudo que foi jeito, mas o veio não arrastava pé de lá. Mas disse que fala c’ôce, assim que passá a lua cheia.

– E quanto aos animais? Algum deles mais velho que um homem?

– Ara, e eu lá tenho cara de entendedor de bicho?

– Me desculpe a franqueza, meu amigo, mas tem sim.

– Eu só entendo de vaca, cavalo e galinha patrão. O resto pra mim é só bicho. De quarqué forma, eu perguntei pra uns amigo, e ninguém sabe de bicho muito antigo na fazenda não. Uns falaro num tar de tamanduá ancestrar, mas ninguém nem sabe se o bicho existe. Achemo melhor nem percura por ele.

– Está certo. A lua vai mudar em quatro dias, então irei falar com o sr. Onório. Quantos anos ele tem?

– Olha, o véio já perdeu as conta. Mas o filho dele me disse que deve ser pra mais de setenta. Despois dele, só o velho Salustião, mas ele disse que lembra bem dos cascudo que levava do seu Onório na época de criança, toda vez que fazia arte. Seu Onório cuidava dele quando iam pra quermece.

– Bom, nesse caso, só me resta esperar esses dias.

– O patrão quer mais arguma coisa? Senão eu já vou, porque a patroa prometeu uma janta especiar lá em casa. Estamos fazendo nove ano de casado.

– Olha, meus parabéns! Nesse caso – joguei a bolsa com o dinheiro que havia levado para a cidade. Devia haver metade do salário dele dentro – pegue de presente. Fica pelo casamento, e pelo serviço extra prestado hoje.

Ele enrubesceu, sorriu e disse:

– Carecia não patrão, mas a ajuda vai ser bem-vinda. O senhor sempre foi muito generoso. Agredecido.

Satisfeito com essa atitude, fui deitar.

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A procura começa

A vida começa cedo na fazenda. Tipicamente, acordo pouco depois do sol nascer. A essa hora, Juca, um de meus empregados, já me trouxe o leite. É um homem competente e dedicado, e a vida no campo faz muito bem a ele. Não tem qualquer vontade de se mudar para Hoor, embora recentemente tenha exigido que o filho de doze anos vá estudar lá.

Sua esposa, Judite, trabalha comigo na cozinha. É uma pessoa simples, não fala muito. Judite é bem mais nova que Juca, em uns quinze anos. No início o pai de Judite não apoiava a união, afinal, causou-lhe estranheza que sua filha fosse casar um de seus amigos de infância. Hoje, já se falam normalmente, mas acho que a relação dos dois nunca será como antigamente.

Juca toma o café conosco, e passo para ele as primeiras diretrizes do dia. Ele coordena dá a ordem para os agricultores do pomar, e repassa minhas instruções para os peões das poucas cabeças de gado que tenho.

– Juca, hoje tenho um pedido diferente para você.

– Ara patrão, e o que seria?

– Bem, Marcos me pediu um favor, e irei atendê-lo. Ele quer que achemos a criatura viva mais antiga da fazenda.

– Ara… e que tipo de criatura? – respondeu no seu forte sotaque caipira – é bicho ou gente?

– Não sei. Teremos que procurar pelos dois.

– E pra mo’ de que o padre que isso?

– Bom, isso é coisa dele. Eu não sei exatamente ao certo.

Juca fez o sinal da cruz e beijou a mão.

– Se o senhor Marcos pediu, deve ser coisa do Artíssimo. Pode dexá, patrão, vou procurá esse seu velhote, nem que eu tenha que revirar cada parmo da sua horta.

– É um pomar, Juca.

– Pra mim patrão, tudo que se planta é horta!

Ele deu um sorriso e terminou de abocanhar o pão. Não precisei gastar muito tempo explicando as atividades do dia. A maioria Juca sabia até melhor do que eu. Só me perguntou se devíamos sacrificar um dos cavalos, que estava doente, e respondi que sim. Era um bom animal, mas infelizmente não teria mais chances de sobreviver. Também orientei ele continuar a  monitoração da mosca-da-fruta nos pés de manga, elas se tornam um problema sério mais ou menos desse mês, até aproximadamente o primeiro quarto do início do ano. Ele torceu o nariz, como eu já esperava. Ele não fazia isso na hora de plantar a manga, de carregar sacos de adubo, de passar o dia sob o sol colhendo, ou mesmo quando precisava domar um cavalo bravo, mas torcia o nariz quando o assunto era simplesmente visitar os pés e ver se tinhamos muitas ou poucas moscas. Isso porque, segundo ele: “Diacho, isso é trabaio de escritório!”.

Depois, pedi para que preparassem meu cavalo, pois eu iria a Hoor, falar com Marcos e conversar com pessoas na câmara comercial. Pelo menos, agora a busca estaria encaminhada.

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A visita do frei

Hoje foi uma manhã comum em minha fazenda, nos arredores da cidade de Hoor. O dia foi ensolarado, bem típico dos nossos verões tropicais e eu pude sentir o cheiro do meu pomar do lado de fora e ouvir o canto dos pássaros. Estava em meu escritório, lidando com os gastos dos empregados, valores recebidos pelas vendas das frutas, materiais para a construção da escola e demais cálculos necessários para manter a fazenda funcionando.

Um dos meus funcionários entrou na pequena saleta, avisando que frei Marcos estava em minha sala, ansioso para falar comigo. O que será que meu amigo queria? Guardei minha pena no tinteiro, arquivei os papéis na terceira prateleira do segundo arquivo. Olhei-me no espelho atrás da poltrona e ali estava eu, Caldor Llanowar, o jovem recém titulado barão de Hoor. Era estranho pensar que, o rosto de um jovem bonito, de cabelos curtos e profundos olhos azuis era, de fato, meu rosto. Não conseguia lembrar com exatidão o meu passado. A última lembrança em minha memória era na floresta, logo após ter sido resgatado de algum acidente.

Teria Marcos desvendado uma maneira de recuperar minha memória?

Caminhei até a sala com um fio de espectativa. O sacerdote estava no sofá, prestes a tirar um cochilo. Marcos não era velho, mas o calor sempre fazia com que suas pálpebras pesassem, assim como o almoço, o frio, a posição horizontal, ou qualquer local onde se sentisse confortável, com ou sem apoio da cabeça. Assim que me viu, pareceu desperto e levantou-se.

– Meu amigo – disse abrindo largo sorriso.

Era impressionante como o dia, mesmo estando luminoso, parecia ainda mais alegre com o sorriso de Marcos. O frei era conhecido por sua capacidade única de despertar emoção sempre que estava presente. Todos sentiam sua sinceridade e se emocionavam com seu jeito humilde.

– Sente-se, Marcos. Estava com saudades. Como vão as obras da Igreja?

– As obras vão bem, obrigado. Suas doações foram muito úteis. – e sorriu novamente. – A universidade é que não parece muito satisfeita em saber que terá sinos ao lado de suas salas de aula, mas estamos entrando em um acordo.

– Ótimo. E que bons ventos o trazem? Ou está aqui porque é quase hora do almoço?

Dessa vez, o frei gargalhou sem o menor sinal de rubor. Esse não era o motivo da sua visita, mas certamente era o motivo da escolha do horário.

– Amigo, você tem a melhor culinária da região, isso não posso negar. Mas o que me traz aqui é um motivo ainda mais sério. Essa noite, tive uma visão, e tenho uma forte impressão de que seja verdade. Sonhei com Frei Solomin.

Não era a primeira vez que Marcos me relatava sonhos com o profeta de Hoor. Solomin foi considerado um homem santo, quando salvou a cidade da peste negra, usando para isso as pétalas de uma flor branca, hoje conhecida como Solom. Muitos argumentam que ele era apenas um bom herbalista, outros já dizem que tanto o homem quanto a flor são santas. Relatos antigos contam como o profeta fez as flores aparecerem dos céus, ou como curou os enfermos. Marcos relatou-me que admirava essa história desde criança, e que depois de seus estudos, decidira tornar-se frei quando em sonho o Solomin ordenou que seguisse esse caminho.

– E o que o profeta das flores te disse?

– Foi estranho… já sonhei com Solomin antes. Não quero que você me entenda mal. Mas eram sempre sonhos com instruções gerais e coisas sobre mim. Não que eu duvidasse dos sonhos, mas é sempre difícil separar nossa própria cabeça da real instrução divina e confesso que algumas vezes temia estar enganado. Dessa vez, no entanto, Solomin me deu instruções bastante específicas e creio que parte delas te envolvem.

– Me envolvem? O que ele disse, afinal?

– Ele disse: “Marcos. Tu fostes escolhido para trazer de volta a velha fé ao mundo. Como um dos descendentes dos Vinte Freis de outrora, trarás de volta a antiga crença, pois ela se baseia na Verdade Maior. Procure pelo homem com o toque do Eterno, e diga-lhe que lhe procure a prova de tua fé embaixo do mais antigo ser de suas terras, fora ele mesmo”.

– Em meu sonho, eu respondi. “Mas, amado Profeta, quem é esse que me dizes? Como saberei quem é esse homem?”

– Eis que ele completa: “O homem com o toque do Eterno tem o olhar dos céus e a fortuna é sua companheira”. Dizendo isso, acordei. E era clara em minha mente a sua imagem, meu amigo.

– Marcos, isso é muito estranho – comentei. – Pela sua visão, eu seria uma espécie de santo. E como a fortuna poderia estar sorrindo para mim se nem mesmo minha memória eu tenho? E que história é essa do toque do Eterno? Me desculpe, mas como pode dizer que essas são instruções específicas?

Acho que Marcos já esperava minha reação cética. Ele simplesmente suspirou, olhou-me novamente e disse:

– Caldor, meu amigo. Venho te apoiando desde que chegou a Hoor. Apresentei-lhe a vários amigos, garanti-lhe seu primeiro emprego, como secretário dessa mesma fazenda, onde hoje, após poucos anos, você é dono. Tentamos juntos desvendar o mistério da sua perda de memória, te apresentei para os melhores especialistas da área. E nunca lhe pedi um favor. Sei que você sempre me retribui, seja com dinheiro ou com o prazer de sua companhia, mas nunca havia lhe pedido um favor, como peço agora. E não peço para que acredite em mim. Só que me prometa que vai me ajudar a encontrar o que Solomin me mandou procurar. Seria dificil te explicar, pois as instruções não são transmitidas pelas palavras de Solomin, mas pelo sentimento e pela fé, portanto, só peço que me dê esse voto de confiança e que me ajude.

– Claro, Marcos. Esteja a disposição para usar meus empregados e andar pela minha fazenda. Pode entrevistar cada pessoa que vive nessas terras e perguntar sua idade. Pode até questionar os bichos, se quiser.

Marcos sorriu e disse.

– Mas você promete que manterá os seus olhos abertos?

– Prometo. – disse com sinceridade.

– Ótimo, se você se dispõe de coração, então, fico tranquilo. Sei que os olhos de outros não enxergarão nada, já que foi a ti que as instruções foram dadas e, creio, que quando chegar a hora, você entenderá a mensagem de Solomin.

– Bom… se você diz assim, prometo sim.

Quando disse isso, não estava muito confiante. Confesso que nessa hora, no dia de hoje, falei mais para agradar Marcos e pelo profundo respeito que tenho por ele. Certamente Marcos percebeu minha dúvida, já que era uma das pessoas mais sensíveis que jamais conheci. Entretanto, pareceu ignorar completamente. Logo depois da minha resposta, apareceu um sorriso no canto de sua boca, enquanto falava:

– Agora, vamos ao outro assunto importante da minha visita… o almoço demora muito? Ou terei tempo de uma soneca antes?

Dessa vez, fui eu quem deu risada. Chamei minha cozinheira e em poucos minutos almoçávamos. Conversamos sobre diversos tipos de trivialidades: as novidades da cidade, as novas obras do prefeito. Após a refeição, perguntei se o frei faria sua visita habitual aos meus funcionários, mas dessa vez ele disse que teria pressa, já que as obras da igreja não poderiam mais aguardar por ele.

Ofereci então a ele que meu cocheiro o levasse. Ele se fez de rogado, mas claramente esperava por esse convite. Aliás, era sempre interessante ver como Marcos demonstrava tão claramente os seus sentimentos em suas atitudes, ainda que falasse o contrário por sua boca. Era exatamente essa abertura que o tornava tão carismático e transmitia a forte sensação a todos de que podiam confiar nele.

Voltei aos meus assuntos, sem dar muita atenção aquele encontro.

A noite, saí de casa e caminhei até o bosque, nos fundos. Ouvi uma música e sorrisos, de alguns de meus funcionários reunindo-se em volta do fogo. Mas eu queria ficar sozinho. A noite era clara, a lua estava cheia, aproveitei para entrar no bosque. Ele me lembrava o período que morei na floresta, onde fui resgatado sem memória. Hannor, o mateiro e sua família me acolheram, e cuidaram de mim até que eu tivesse saúde suficiente para vir até Hoor.

Sentei-me abaixo do jequitibá rosa, encostei-me e observei as estrelas. Ainda podia ouvir o som das pessoas, mas agora ele era baixo e já não podia mais distinguir exatamente o que falavam.

Amanhã iniciaria a busca pelo que? Por onde? Quem era o mais velho da minha fazenda? Por que os sonhos proféticos tem de ser tão enigmáticos?

Fiquei ali, pensando em como era difícil não se lembrar e como a amizade de Marcos era importante para mim. Não conseguia saber quem eram meus parentes e tinha feito poucos amigos. Esse pensamento me deu a certeza de que eu procuraria, seja lá o que for, nem que fosse apenas para agradar o frei. Passei algumas horas sentado ali, concentrei minha audição no som dos instrumentos, enquanto deixava a mente vagar livre. As modas de viola, que haviam começado alegres, agora não passavam de um único instrumento, tocando um som melancólico sobre algum amor esquecido.

Decidi-me que era hora de levantar, voltei para dentro de casa. Dei as últimas ordens, e me recolhi, para preparar para o dia de amanhã. E aqui, deitado em minha confortável cama, sozinho em meu quarto, termino de escrever sobre meu dia de hoje.

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