Chegou o dia de ir falar com o velho. Pedi para que o Juca me levasse. Onório morava numa cabana perto do rio, e teríamos que andar um trecho no meio da mata a pé. A mata na minha fazenda não era muito densa, mas era fácil se perder lá dentro, caso você se afastasse da trilha. Em sua maioria a mata tinha árvores grandes e antigas, que já estavam aqui muito antes de qualquer demarcação de terra feita pelo homem. Parte das árvores já havia sido cortada por lenhadores, outra parte perdera-se em incêndios e a floresta hoje sequer lembrava o que um dia foi.
Conversávamos animados e andavamos a passos lentos. Já podíamos ouvir o som tranquilo do fluxo da água do Rio, quando repentinamente um grito de terror explodiu do meio da floresta. Pela altura, não devia estar muito longe de onde estavamos.
– Diacho. – Falou Juca e começou a correr. Eu corri atrás, a poucos metros dele, mas Juca era mais rápido.
Poucos passos depois, vi Juca caindo numa armadilha, uma vala funda. Tentei parar, mas foi em vão. A inércia me empurrara para baixo da terra, junto com ele. Fiquei completamente sujo de terra, ralei os cotovelos e os joelhos, e parecia que minha testa sangrava. Juca estava em condição semelhante.
– Ara… num imaginava que tinha gente caçando por essas bandas. – Me disse Juca.
– E não tem. Pelo menos, não na minha floresta. Vamos tentar gritar.
Gritamos, mas não ouvimos nenhuma resposta. Estava escuro embaixo do buraco. Juca resmungava baixinho palavras que não vale a pena transcrever aqui.
Pouco tempo depois, começamos a ouvir uma voz. Cantava satisfeito e se aproximava da vala. Olhou para baixo e falou:
– Aqui é Orono. Patrãozinho tá aí?
– Estou sim, Onório! – Gritei feliz por ouvir a voz do velho. – Caímos aqui por acidente, traga uma corda!
Foi então, que minha esperança se esgotou.
– Ahahaha… véio Orono e mais vivo que o demonho. Num dianta gritá, num tem ninguém pur essas banda.
– Ara seu Onório. O patrão é um homem bão, não é o demonio não. Tira nóis daqui, sô! – Gritou Juca.
– Num dianta pregá peça ni eu, seu demonho. Véio Orono já conhece suas artimanha. Agora eu vô trata de expursá ocê, pra mo’doce dexá essas terra. Num é a toa que deixei a lua passá, pra mó’doce fica fraco e não pude me embaraia as idéa.
E dizendo isso, o velho se foi. Tentamos por diversas vezes sair do buraco, mas foi em vão. O velho cavara fundo, e nem subindo um no ombro do outro conseguimos alcançar a saída. O resultado foi só que me machuquei muito mais. Primeiro, porque não consegui me equilibrar nos ombros de Juca e caí umas três ou quatro vezes. Depois, porque não conseguia alcançar nada que me desse apoio na superfície, e acabei enganchando a mão em diversos locais diferentes.
Algumas horas depois, ouvimos Onório voltando. Vinha com uma mula, que arrastava alguma coisa pesada. Como o terreno não era liso, imagino o esforço a que tenha submetido o animal.
– Onório, por favor – gritei. – Deve estar havendo algum engano. Eu não sou demônio. Acredito nos deuses, pago meus impostos. Estou até ajudando Marcos a construir a igreja!
– Num dianta espraguejá, demonho. Onoró tem a visão, e desde que u sinhô chegou, percebi que era o demo, ou tinha parte cum ele. Onóro vê seu brio, é mais brioso que outros, num é naturar. Como ocê num é mago e num é fada, só pode ser coisa do diabo. Desse dia inté hoje, percurei oportunidade de te pegá, e quar foi a minha surpresa quando ôvi dizerem que o sinho tava a minha caça. Só podia ser pra mó de se livrá de mim. Mas o véio aqui foi mais rápido, fingi o grito de uma virge sendo sacrificada, pro sinho aparece correno, num foi?
– Do que você está falando? Que brilho? Virgem? Não entendo nada!
– Num si faça de disintindido, coisa ruim. Mas Onóro vai fazê um teste. Vou prepará uma caldera quente e jogá nuce. Se o sinhô morrê com a quentura da mistura, tá perdoado, num era demonho, e que Deus o tenha. Mas se o sinho véve, aí vô fazê uma oração e chama umas benzedera, pra mo’de te expursá dessas terra.
– Ara home, e porque não faz a oração de uma vez? Aí ocê não nos escalda! – Gritou Juca, com um fio de desespero na voz.
Onório riu.
– Mas é tinhoso memo! Onóro sabe que num dianta rezá com demonho forte! Agora ande, fique quieto enquanto eu preparo a receita. E num dianta troca de voiz, pois eu sei que ocê é cheio de artimanha!
Ouvimos ele juntar lenha e preparar a receita. Cheirava a gengibre e sálvia. Se ninguém passasse por ali, em algumas horas, certamente seriamos escaldados vivos. Na melhor das hipóteses, o caldeirão seria pequeno, nos feriríamos muito gravemente. Mas Juca, que conhecia as crendices do povo muito melhor do que eu, não tinha esse tipo de esperança.
Estavamos machucados. Tentamos sair do buraco por mais alguns minutos, mas só nos cansamos em vão. Onório sorria sempre que nos ouvia debatendo. Não tinhamos escolha.
Só nos restava esperar… e rezar.